LIVRO: MARAVILHOSA BÍBLIA
AUTOR: EUGENE H. PETERSON
O Pastor Eugene H. Peterson, está certo de que o modo como lemos a Bíblia é tão importante quanto o que lemos nela.
Em grande medida, nossa leitura da Palavra é motivada pela busca de informação sobre Deus e salvação, de princípios e da "verdade" que nos levem a viver melhor.
Dificilmente lemos a Bíblia a fim de ouvir Deus e responder-lhe em oração e obediência. Peterson nos desafia a ler as Escrituras segundo o que elas realmente São - a revelação de Deus - e a vivê-las, à medida que as lemos.
Em grande medida, nossa leitura da Palavra é motivada pela busca de informação sobre Deus e salvação, de princípios e da "verdade" que nos levem a viver melhor.
Dificilmente lemos a Bíblia a fim de ouvir Deus e responder-lhe em oração e obediência. Peterson nos desafia a ler as Escrituras segundo o que elas realmente São - a revelação de Deus - e a vivê-las, à medida que as lemos.
Karl Barth defendeu a opinião de que nossa leitura da Bíblia, assim como dos escritos moldados por ela, não é orientada pelo desejo de descobrir como incluir Deus em nossa vida e fazê-lo participar de nossa existência. Nada disso. Abrimos o livro e percebemos que, a cada página, ele nos tira da defensiva, nos surpreende e atrai para uma realidade própria, induzindo-nos a um envolvimento com Deus nos termos divinos.
Eles propôs uma ilustração que se tornou famosa. Uso aqui a base de seu relato, mas, com uma pequena ajuda de Walker Percy, tomei a liberdade de incluir detalhes por conta própria. Imagine um grupo de homens e mulheres em um enorme galpão. Eles nasceram nesse galpão, cresceram nele e têm ali tudo de que precisam para suprir as necessidades e viver com conforto. Não há saídas no galpão, mas há janelas. Elas estão grossas de tanto pó; nunca são limpas e ninguém jamais se preocupa em olhar para fora. Para que olhar? O depósito é tudo o que conhecem. Ali eles têm tudo de que precisam.
Certo dia, porém, uma das crianças arrasta um banquinho para junto de uma janela, raspa a sujeira e olha para fora. Ela vê pessoas caminhando nas ruas; chama seus amigos para apreciarem também. Eles se espremem ao redor da janela - não tinham ideia de que havia um mundo do lado de fora do galpão. Notam, então, uma pessoa na rua olhando e apontando para cima; não demora muito e várias pessoas se juntam, levantando os olhos e falando animadamente.
As Crianças olham para cima, mas não há nada para ver além do telhado do galpão. Elas finalmente se cansam de espiar as pessoas na rua agindo de uma maneira esquisita, apontando para o nada e se entusiasmando com isso. Qual o sentido de ficar parado à toa, apontando para o vazio e falando com entusiasmo sobre o nada?
O que aquelas pessoas da rua olhavam era um avião (ou um bando de gansos voando, ou um acúmulo gigantesco de nuvens). Quem passa na rua levanta os olhos e vê o céu e tudo o que há nele. As pessoas no galpão não tem um céu acima delas, apenas um teto.
O que aconteceria, porém, se um dia uma daquelas crianças abrisse uma porta na parede do galpão, insistisse com seus amigos para sair e descobrisse com eles o céu imenso por sobre sua cabeça e o grandioso horizonte adiante?
É isso o que acontece, escreve Barth, quando abrimos a Bíblia: entramos em um mundo totalmente desconhecido, o mundo de Deus, de criação e da salvação, que se estende infinitamente sobre e além de nós.
A vida no galpão nunca nos preparou para algo assim.
Como era de esperar, os adultos no depósito zombaram das histórias das crianças. Afinal de contas, eles têm o controle completo do mundo do galpão, como nunca seriam capazes de fazer do lado de fora. E desejam manter as coisas desse jeito.
* * *
Como era de esperar, os adultos no depósito zombaram das histórias das crianças. Afinal de contas, eles têm o controle completo do mundo do galpão, como nunca seriam capazes de fazer do lado de fora. E desejam manter as coisas desse jeito.
* * *
Paulo foi a primeira criança que raspou a sujeira da janela para Barth, abriu uma porta no galpão e insistiu que ele saísse para o grande e estranho mundo do qual os escritores bíblicos dão testemunhos.
Em contato com essa escola de escritores, partindo de Paulo, mas logo incluindo toda a faculdade do Espírito Santo, Barth tornou-se um leitor cristão, lendo palavras a fim de ser formado pela Palavra. Só então ele passou a ser um escritor cristão.
A narrativa de Barth sobre o que lhe aconteceu foi publicada posteriormente em The Word of God and the Word of Man ( A Palavra de Deus e a palavra do homem).
O romancista John Updike afirmou que o livro "apresentou-me uma filosofia para viver e trabalhar e mudou desse modo a minha vida". Ao receber a medalha Campion em 1997, Updike deu crédito à fé cristã revelada na Bíblia recém-descoberta de Barth, por ensinar-lhe, como escritor, "que a verdade é sagrada, e falar a verdade é uma nobre e útil profissão; que a realidade que nos rodeia é criada e vale a pena ser observada; que homens e mulheres são radicalmente imperfeitos e radicalmente valiosos".
* * *
A maioria de nós leva consigo um punhado de mandamentos essenciais que nos mantêm nos trilhos: "Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração"... "Ame o seu próximo"... Honre seu pai e sua mãe... Arrependa-se e creia... Lembre-se do Sábado... Não ande ansioso... Dê graças por tudo... Ore sem cessar... Siga-me... Vá e proclame... Carregue a sua cruz... Acrescente este ao seu repertório: "Coma esse livro". Ap 10:9-10
As Escrituras não só nos revelam Deus, mas também nos inserem nessa revelação e nos aceitam como participantes dela.
Meu desejo é chamar atenção para o fato de que é possível viver a Bíblia, toda a Bíblia; trata-se de um texto que constitui fundamento para a nossa vida. A Bíblia revela um mundo criado, ordenado, abençoado por Deus, no qual nos encontramos inteiros e à vontade.
Os cristãos se alimentam das Escrituras Sagradas. Elas nutrem a comunidade de santos como o alimento nutre o corpo humano. Não se trata apenas de aprender, estudar ou usar as Escrituras; nós, cristãos, as assimilamos, introduzindo a Palavra em nossa vida para que seja metabolizada e transformada em atos de amor, copos de água fresca, missões pelo mundo inteiro, cura, evangelismo e justiça em nome de Jesus, mãos levantadas em adoração ao Pai, pés lavados na companhia do Filho.
O imperativo metafórico nos chega apoiado pela autoridade de João, o teólogo;
10:8 E a voz que eu do céu tinha ouvido tornou a falar comigo, e disse: Vai, e toma o livrinho aberto da mão do anjo que está em pé sobre o mar e sobre a terra. 10:9 E fui ao anjo, dizendo-lhe: Dá-me o livrinho. E ele disse-me: Toma-o, e come-o, e ele fará amargo o teu ventre, mas na tua boca será doce como mel. 10:10 E tomei o livrinho da mão do anjo, e comi-o; e na minha boca era doce como mel; e, havendo-o comido, o meu ventre ficou amargo. Apocalipse 10:9-10
Isso cativa a sua atenção? João é uma figura de autoridade. Ele era pastor de cristãos marginalizados, política e economicamente fracos, em uma sociedade em que o compromisso de seguir a Cristo os rotulava como criminosos do Estado.
Isso cativa a sua atenção? João é uma figura de autoridade. Ele era pastor de cristãos marginalizados, política e economicamente fracos, em uma sociedade em que o compromisso de seguir a Cristo os rotulava como criminosos do Estado.
A tarefa dele era ajudar aquelas pessoas a não perder o foco em relação à identidade cristã e manter a vida cheia do Espírito, o discipulado vigoroso, a esperança viva contra os enormes obstáculos que enfrentavam; sobretudo, era garantir que o Jesus vivo, que fala e age, continuasse a ser o centro da existência.
João não queria que eles se limitassem à mera sobrevivência, como se estivessem apenas se segurando a um salva-vidas em plena tempestade. Queria que as pessoas vivessem, e vivessem de verdade, vencendo a oposição de todos os que as cercavam. É isso que os profetas, pastores e escritores fazem, e nunca é fácil. Não é mais fácil hoje do que foi para João.
João é mais conhecido até hoje por suas extravagâncias apocalípticas - aquelas visões impetuosas, turbulentas e marcantes que vieram a ele em uma manhã de Domingo, enquanto adorava na ilha-cárcere de Patmos. Em meio às mensagens visionárias, ele vislumbrou um anjo gigantesco, com um pé plantado no oceano e o outro no continente, segurando um livro. Desse púlpito abrangendo terra e mar, o anjo pregava, a partir do livro, um sermão explosivo como se acompanhando de trovões. Esse sermão não faria ninguém dormir!
João começou a escrever o que escutava - ele nunca ouvira um sermão como aquele, mas lhe disseram para não continuar. Uma voz disse a ele que pegasse o livro com o enorme anjo, aquele mensageiro de Deus que pregava de seu púlpito singular que abarcava o mundo. Foi o que João fez; aproximou-se do anjo e pediu: "Dê-me o livro". O anjo lhe entregou o livro, mas respondeu: "Ei-lo aqui; coma-o. Como este livro. Não tome apenas notas do Sermão. Coma o livro". João obedeceu. Pôs de lado o caderno de notas e o lápis. Pegou a faca e o garfo. Comeu o livro.
As imagens são complexas, como todas as visões do Apocalipse de João - uma fusão de imagens de Moisés, dos profetas e de Jesus. Essa visão do anjo-pregador está repleta de reverberações. Mas o que parece mais imediato e óbvio é que o poderoso anjo está pregando a Bíblia, as Escrituras Sagradas. O livro que João comeu era a Bíblia, ou a parte da Bíblia já escrita na época.
A palavra "livro" (biblion em grego, que chegou ao nosso idioma como "Bíblia") sugere que a mensagem dada por Deus a nós tem significado, plano e propósito. Escrever um livro requer ordenação de palavras de maneira deliberada. Essas palavras fazem sentido.
Não chegamos a Deus por meio de adivinhação: Ele se revela. Essas palavras bíblicas revelam a Palavra que criou o céu e a terra; elas revelam o Verbo que se tornou carne em Jesus para a nossa salvação.
A Palavra de Deus é escrita, entregue e traduzida para nós a fim de que possamos participar do plano. Seguramos essa Bíblia e a lemos para que possamos ouvir e reagir diante dessas palavras criadoras e salvadoras, tornando-nos, com isso, imediatamente parte da criação e da salvação.
O ato de comer o livro significa que ler não se reduz a um ato objetivo de olhar as palavras e determinar-lhes o significado. Comer o livro está em oposição direta ao ensinamento que quase todos nós recebemos sobre a leitura, qual seja, desenvolver no leitor uma objetividade fria que tenta preservar a verdade científica ou teológica, eliminando ao máximo qualquer participação pessoal que venha a contaminar o sentido.
Mas nenhum de nós começa a ler dessa maneira. Tenho uma neta que come livros. Quando estou lendo uma história para o irmão dela, a menina pega outra em uma pilha e a mastiga. Está tentando colocar o livro dentro de si da maneira mais rápida que conhece: não por meio dos ouvidos, mas pela boca. Ela não faz muita distinção entre ouvidos e boca - qualquer abertura serve, contanto que o engula. Em breve, porém, ela irá à escola e verá que essa não é a maneira correta de ler livros. Aprenderá que precisa buscar respostas neles; que o objetivo da leitura é passar nas provas. Sendo aprovada, colocará o livro na prateleira e comprará outro.
A leitura que João está experimentando, no entanto, não é do tipo que nos prepara para uma prova. Comer um livro implica engolir tudo, assimilando-o nos tecidos de nossa vida. Os leitores se tornam aquilo que leem. Se as Escrituras Sagradas são bem mais que um simples falatório sobre Deus, elas precisam ser internalizadas. A maioria de nós tem opiniões sobre Deus que não hesita em verbalizar. Mas só porque uma conversa (ou um sermão, ou uma palestra) inclui a palavra "Deus", isso não a qualifica como verdadeira.
O anjo não instrui João a passar informações sobre Deus; ele ordena que assimile a Palavra de Deus para que, ao falar, ela se expresse naturalmente em sua sintaxe, assim como o alimento que comemos, quando somos saudáveis, é inconscientemente assimilado em nossos nervos e músculos e atua quando falamos e agimos.
As palavras - ditas e ouvidas, escritas e lidas - têm por objetivo produzir algo em nós, gerar saúde e integridade, vitalidade e santidade, sabedoria e esperança. Sim, coma esse livro.
Como mencionado anteriormente, João não foi o primeiro profeta bíblico a comer um livro como se fosse um sanduíche. Seiscentos anos antes, Ezequiel recebeu um livro e a mesma ordem para comê-lo (Ez 2.8-3.3). Jeremias, contemporâneo de Ezequiel, também comeu a revelação de Deus, sua versão da Bíblia Sagrada (Jr 15.16). Ezequiel e Jeremias, como João, viveram em uma época na qual havia muita pressão para viver de acordo com um texto diferente daquele revelado por Deus nas Escrituras Sagradas. A dieta das Escrituras para os três resultou em frases consistentes, metáforas de uma clareza impressionante e uma vida profética de sofrimento corajoso.
Se estivermos correndo o risco (e certamente estamos) de sucumbir à tendência, tão disseminada em nossa cultura, de afastamento das Escrituras Sagradas, substituindo-as pelo texto da própria experiência (necessidades, desejos e sentimentos) como autoridade em nossa vida, os três impetuosos profetas, João, Ezequiel e Jeremias, responsáveis pela formação do povo de Deus nos piores períodos (exílio na Babilônia e perseguição romana), podem nos convencer da necessidade mais básica: sim, coma esse livro.
A comunidade cristã gastou enorme quantidade de energia, inteligência e oração para aprender a "comer esse livro", como fez João em Patmos, Jeremias em Jerusalém e Ezequiel na Babilônia. Não precisamos saber tudo dele para ir à mesa, mas conhecê-lo, mesmo que em parte, ajuda muito, especialmente em uma época na qual tantos de nossos contemporâneos o tratam como simples aperitivo. A ordem incisiva do anjo é também um convite. Venha à mesa e coma esse livro, pois cada palavra pretende fazer algo em nós, como proporcionar saúde e inteireza, vitalidade e santidade ao corpo e à alma.
Despersonalizando o Texto
Nem todos, entretanto, leem a Bíblia desse modo ou querem fazê-lo dessa maneira. Muitos a consideram interessante por outras razões; são atraídos a ela por conta de outras finalidades. A Bíblia adquiriu muita autoridade no decorrer dos séculos e é julgada útil ou interessante de outras maneiras, além de envolver-nos na revelação de Deus.
Sempre existiu muita gente fascinada pelos desafios intelectuais apresentados pela Bíblia.
Se você tem uma mente curiosa e gosta de exigir o máximo de seu potencial, dificilmente poderá fazer melhor escolha do que se tornar especialista das Sagradas Escrituras. Entre em qualquer biblioteca teológica e percorra os corredores de obras cuidadosamente catalogadas sobre a Bíblia, de maneira geral, e sobre cada um dos livros que a compõem. Você ficará impressionado (ou impressionada).
Pegue um livro ao acaso na prateleira e terá a certeza quase absoluta de estar diante da evidência de um intelecto de primeira linha que esteve investigando aquelas páginas para descobrir a verdade e chegou a resultados muito impressionantes e interessantes. Linguagem, história, cultura, ideias, geografia e poesia. A Bíblia contém tudo isso e muito mais. A pessoa pode passar a vida inteira diante da Bíblia lendo-a, estudando-a, pregando-a e escrevendo sobre ela, sem jamais esgotá-la.
Há outros que se aproximam da Bíblia com um propósito mais prático: querem viver bem e ajudar seus filhos e vizinhos a fazer o mesmo. Eles sabem que a Bíblia oferece conselhos sadios e orientações confiáveis para ter sucesso neste mundo, o que costuma ser confundido pelas pessoas com a conquista de riquezas, saúde e sabedoria.
A Bíblia tem a reputação de fornecer um roteiro sólido para o comportamento pessoal e social, e todos querem se beneficiar dela. As pessoas costumam ter a terrível tendência de criar problemas. A Bíblia pode manter-nos fora do fosso e no caminho reto e estreito. Além disso, é claro, há sempre um número considerável de pessoas que lêem a Bíblia pelo que costuma ser chamado de "inspiração".
Há muitas passagens lindas e confortadoras nas Escrituras. Quando estamos solitários, sofrendo ou ansiosos por palavras que nos tirem da monotonia, o que há de melhor do que a Bíblia? As histórias emocionantes de Elias, os ritmos majestosos dos salmos, a pregação retumbante e engenhosa de Isaías, as parábolas encantadoras de Jesus, a energia dinâmica dos ensinos de Paulo.
Se estiver em busca de uma leitura bíblica devocional e aconchegante, terá de escolher com muito critério: há grandes porções que podem fazer você relaxar até dormir ou continuar de olhos abertos a noite toda. Mas há pouca literatura disponível na maioria das livrarias bíblicas que lhe diga quais partes da Bíblia ler quando deseja receber conforto ou consolo - ou qualquer outra coisa que seu estado de espírito exigir.
Não quero ser severo demais com qualquer desses grupos de leitores da Bíblia, especialmente considerando que eu mesmo pertenci, durante um bom tempo, a cada um deles. No entanto, desejo chamar a sua atenção para o fato evidente de que, seja qual for o grupo com o qual você se identifique, a Bíblia será usada para seus propósitos, e esses propósitos não exigirão necessariamente nada em termos de relacionamento.
É possível se aproximar da Bíblia com toda a sinceridade, respondendo ao desafio intelectual que ela faz, pela orientação moral que oferece ou pela edificação espiritual que promove, sem tratar de modo algum com um Deus pessoal e revelador e tem desígnios pessoais a seu respeito.
Vamos usar os mesmos termos com os quais começamos: é possível ler a Bíblia de vários ângulos diferentes e com vários propósitos sem lidar com Deus tal como Ele se revelou; sem se colocar sob a autoridade do Pai, do Filho, do Espírito Santo, que está vivo e presente em tudo quanto somos e fazemos.
Sejamos bem claros: nem todos que se interessam pela Bíblia e até se entusiasmam com ela querem se envolver com Deus. Deus, porém, é o livro em si. No último livro que escreveu, C.S. Lewis falou de dois tipos de leitura:
A que usamos ao ler um livro para propósito pessoal e aquela em que assimilamos o propósito do autor. A primeira só assegura leitura negativa; a segunda abre a possibilidade para uma boa leitura
Quando a recebemos, empregamos nossos sentidos e nossa imaginação, assim como vários outros poderes, segundo um padrão inventado pelo artista. Quando a usamos, nós a consideramos como ajuda para as nossas atividades [...] Usar é inferior a receber porque a arte, se for usada em vez de recebida, simplesmente facilita, alegra, alivia ou suaviza a nossa vida, mas não acrescenta nada a ela.
É por isso que a noção formulada pela Igreja como Santíssima Trindade é tão importante quando nos aproximamos desse livro, a Bíblia. Lemos com o objetivo de penetrar na revelação de Deus, tão fortemente pessoal; lemos a Bíblia da maneira pela qual chega a nós, e não como nos achegamos a ela. Nós nos submetemos às variadas e complementares operações de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo; recebemos essas palavras para que possamos ser formados agora, e por toda a eternidade, para a glória de Deus.
Muitos leitores da Bíblia supõem que exegese é o que você faz depois de ter aprendido grego e hebraico. Isso não é verdade.
Exegese é apenas uma leitura cuidadosa do texto em nossa língua materna, feita com amor. É de grande valia ler grego e hebraico, mas, se você não teve esse privilégio, permaneça em seu idioma. Se aprendermos a amar esse texto e a vê-lo com inteligência e disciplina, não estaremos muito distantes dos melhores eruditos gregos e hebraicos. Aprecie os especialistas nas Escrituras, mas não se deixe intimidar por eles.
Exegese é algo muito diferente de presunção; exegese é um ato de amor - amor por aquele que fala o suficiente para desejar a compreensão correta de cada palavra. Exegese é amar a Deus o bastante para parar e ouvir cuidadosamente o que ele diz.
Por conseguinte, damos a esse texto atenção e tempo, apreciando cada vírgula e ponto-e-vírgula, admirando a estranheza de determinada preposição, deliciando-se na colocação surpreendente de um ou outro substantivo. Quem ama não se limita a dar uma olhadinha rápida no objeto amado para captar uma mensagem ou sentido e, depois, sair correndo para conversar com os amigos sobre seus sentimentos; não é esse o comportamento de quem ama.
No entanto, sem exegese, a espiritualidade se torna tola, aguada. Espiritualidade sem exegese acaba auto-indulgente.
Sem uma exegese disciplinada, a espiritualidade se transforma em um dialeto próprio, a partir do qual defino todos os verbos e substantivos-chave de minha própria experiência.
A oração termina coxeando, entre suspiros e gaguejos.
Século após século, as técnicas exegéticas na comunidade cristã foram polidas, e nossas metodologias, aprimoradas. É uma imensa ironia que uma geração com acesso à melhor exegese bíblica, mesmo no chamado "clero instruído", permaneça, em grande parte, indiferente a ela.
Todo leitor cuidadoso da Bíblia é afetado pela maneira dela de ser "estranha e inflexível o tempo todo", em comparação ao que estamos acostumados e esperamos. A Bíblia não é "uma leitura fácil".
Algo muito comum entre nós é o desenvolvimento de certo hábito de solucionar os problemas bíblicos, calculando o que não parece se ajustar e depois aparando as arestas a fim de que se encaixe mais facilmente em nosso modo de pensar. Queremos usá-la de uma maneira confortável, e se isso não acontece, tentamos reconfigurá-la. Um bom amigo adverte seus alunos do risco de se tornarem especialistas em texto. Os especialistas aprendem esse texto e o dominam inteiramente a fim de poder consertá-lo quando sentem que está um pouco "fora dos eixos", para que nos leve suavemente aonde queremos ir com nossas necessidades, desejos e sentimentos.
No entanto, nada em nossas Bíblias é unidimensional, sistematizado ou teologizado. Tudo no texto é íntima e organicamente ligado à realidade em que vivemos. Não podemos diagramar e fazer gráficos da Bíblia, dividindo-a em assuntos ou progressões perfeitamente rotulados, assim como não poderíamos fazer isso com nossos jardins.
Um jardim está constantemente mudando com o crescimento de flores e ervas daninhas. Ou, para fazer uma comparação mais complexa, pense em uma feira rural onde haja um parque de diversões, barracas chamativas, crianças segurando o dinheiro da mesada, animais da fazenda e cavalos de corrida em exibição, homens e mulheres de todas as classes sociais.
O lugar está cheio de vida, humana e animal, boa e má, gananciosa e generosa, indolente e determinada. Essas coisas, estejam elas no jardim ou na feira rural, só podem ser penetradas. A Bíblia é uma revelação dessa realidade vivida, e Deus é a forma de vida dominante.
Gostamos de dizer que a Bíblia tem todas as respostas, e isso, com certeza, é verdade. O texto bíblico nos posiciona dentro de uma realidade coerente com nossa condição de seres criados à imagem de Deus e com o destino que nos está reservado, de acordo com os propósitos de Cristo. Contudo, a Bíblia também propõe várias perguntas, algumas das quais passaremos o resto da vida fazendo o máximo para evitar.
Esse livro nos torna participantes no mundo da existência e da ação de Deus; nós não participamos dele em nossos próprios termos. Não elaboramos a trama nem decidimos qual será o nosso personagem. Esse livro tem poder gerador: coisas acontecem conosco quando permitimos que o texto nos inspire, estimule, repreenda, apare as arestas. Ao chegar ao fim desse processo, não somos mais a mesma pessoa.
O lugar está cheio de vida, humana e animal, boa e má, gananciosa e generosa, indolente e determinada. Essas coisas, estejam elas no jardim ou na feira rural, só podem ser penetradas. A Bíblia é uma revelação dessa realidade vivida, e Deus é a forma de vida dominante.
Gostamos de dizer que a Bíblia tem todas as respostas, e isso, com certeza, é verdade. O texto bíblico nos posiciona dentro de uma realidade coerente com nossa condição de seres criados à imagem de Deus e com o destino que nos está reservado, de acordo com os propósitos de Cristo. Contudo, a Bíblia também propõe várias perguntas, algumas das quais passaremos o resto da vida fazendo o máximo para evitar.
A Bíblia é um livro confortador, mas também tem a capacidade de nos confundir. Como esse livro; ele será doce como o mel em sua boca, mas amargo em seu estômago. Não é possível reduzir esse livro a ponto de manipulá-lo. Você não pode domesticá-lo, para que seja usado de acordo com a sua conveniência, nem pode fazer dele uma espécie de bichinho de estimação, treinando para obedecer a seus comandos.
Esse livro nos torna participantes no mundo da existência e da ação de Deus; nós não participamos dele em nossos próprios termos. Não elaboramos a trama nem decidimos qual será o nosso personagem. Esse livro tem poder gerador: coisas acontecem conosco quando permitimos que o texto nos inspire, estimule, repreenda, apare as arestas. Ao chegar ao fim desse processo, não somos mais a mesma pessoa.
"O que nunca devemos ser encorados a fazer (embora todos incorramos nesse erro com frequência) é forçar as Escrituras a se ajustar à nossa experiência. Nossa experiência é restrita demais; seria como tentar fazer o oceano caber dentro de um dedal. O que desejamos é nos ajustar ao mundo revelado pelas Escrituras, nadar nesse vasto oceano".
"Se não for feita da maneira adequada, a leitura da Bíblia pode gerar muitos problemas. A comunidade cristã está tão preocupada com a ideia de como ler a Bíblia quanto com a necessidade de que ela seja lida. Não basta colocar uma Bíblia na mão de uma pessoa e ordenar que ela comece a leitura. Isso é tão insensato e perigoso quanto entregar a chave de um carro para um adolescente e dizer a ele que dirija. O perigo reside na possibilidade de, tendo em mãos uma peça com tal tecnologia, a usarmos sem o devido conhecimento, colocando em perigo nossa vida e a das pessoas à nossa volta. Outro risco é o de usarmos essa tecnologia de maneira inconsequente e violenta, intoxicados com o poder que ela nos confere. Lucas 10:26"
Recebemos o alerta: não basta compreender a Bíblia ou admirá-la. Deus falou; agora é a nossa parte. Oramos a partir do que lemos, participamos ativamente do que Deus revela na Palavra. Deus não espera que adotemos essa nova realidade deitados numa rede. Seria melhor não fazer isso, pois o objetivo de Deus é que essa Palavra nos coloque de pé, em condições de andar, correr, cantar.
Deus não nos obriga a nada disso;
A Palavra de Deus é um convite pessoal, uma ordem pessoal, um desafio pessoal, uma repreensão pessoal, um juízo pessoal, um consolo pessoal, uma direção pessoal. Tudo, porém, sem forçar ou coagir. Temos espaço e liberdade para responder, para entrar na conversa. Desde o início até o fim, a Palavra de Deus é dialógica, uma palavra que convida à participação. A oração é a nossa participação na criação, na salvação e na comunidade que Deus revela a nós nas Escrituras Sagradas.
Tradução para o Grego
A tradução da Bíblia hebraica para o grego é a nossa primeira tradução completa. Enquanto, na tradução em aramaico, temos apenas pedaços, fragmentos espalhados aqui e ali - e, como na história de Esdras e os treze levitas, algo que oferece apenas uma ideia do conteúdo, a tradução das Escrituras em grego é completa, toda a Bíblia hebraica bem antes do tempo de Jesus e da descida do Espírito Santo no Pentecostes.
Com o tempo, essa tradução grega foi a Bíblia por excelência da primeira igreja cristã, sua versão "autorizada". Quando Paulo escrevia suas cartas à recém-formada comunidade cristã e citava a Bíblia para legitimar e confirmar o relacionamento comum daqueles primeiros cristãos com o povo de Deus que havia sido remido da escravidão no Egito, treinado em uma vida de amor e obediência no deserto e na Terra Prometida, instruído e desafiado pelos grandes profetas pregadores de Israel, ele quase sempre citava essa tradução grega.
Quando Marcos escreveu seu Evangelho, ele fez 68 referências distintas ao Antigo Testamento, das quais 25 são citações exatas ou quase exatas da tradução grega. Ao chegarem à cidade grega de Beréia, Paulo e Silas fizeram um estudo bíblico com alguns judeus na sinagoga deles, "examinando todos os dias as Escrituras, para ver se tudo [o evangelho] era assim mesmo". Tratava-se, sem dúvida, da tradução grega oficial das "Escrituras" que eles estudavam (At 17:10-12). Muitos séculos depois, Walter Bauer escreveu sua introdução para o que se tornou o léxico-padrão do Novo Testamento grego, afirmando: "Quanto à influência da LXX [a tradução grega], cada página desse léxico mostra que ela supera todas as demais influências em nossa literatura".
Assim como a tradução para o aramaico se tornara necessária nos anos que se seguiram ao decreto de Ciro, segundo o qual o aramaico deveria ser a linguagem oficial do imenso e multilinguístico império persa, duzentos anos mais tarde tornou-se necessária a tradução em grego quando Alexandre, o Grande conquistou tudo o que era persa, transformando, quase da noite para o dia (conforme a história relata), todos em gregos ou, pelo menos, em pessoas que falavam grego. (Pg 137-145).
Resumo & Resenha
Teologia & Psi